Caravana da Fraternidade

Caravana da Fraternidade
Francisco Spinelli

domingo, 2 de setembro de 2012

é a primeira figura feminina que se projeta na linha de um horizonte difuso, no qual, entretanto, firmemente acendem-se as luzes das mais altas aspirações e expectativas jamais oferecidas ao gênero humano.


Noite de 19 de setembro de 1860. Kardec é recebido no Centro Espírita de Broteaux, o único existente em Lyon. À porta esperam-no Dijou, operário, chefe de oficinas, e sua esposa.
Este é, na História, o primeiro encontro de dirigentes espíritas. Dijou encontra-se à testa do grupo lionês, Kardec desempenha as funções maiores na Societé parisiense. A mão do emérito pensador aperta vigorosamente os dedos calosos e ásperos do companheiro, a quem chama “irmão”. No olhar grave que trocam vê-se que mutuamente se entendem: embora em planos diferentes, suas responsabilidades se equivalem.
Transpostos os portais, o coração de Kardec se rejubila. O “milagre” a que tantas vezes já fizera menção, sempre com arrebatamento e orgulho, o grande feito que compete à Doutrina Espírita realizar, consubstancia-se ali, ante seus olhos, e é um mentor espiritual, Erasto, em sublime epístola dirigida à comunidade lionesa, quem vai encontrar palavras para vestir a emoção do Codificador: “Não podeis imaginar quanto nos é doce e agradável
presidir ao vosso banquete, onde o rico e o operário se abraçam, bebendo a fraternidade!”
Kardec dirige-se à tribuna singela e o Centro Espírita de Broteaux, pelo futuro em fora, será lembrado como o local da pira. Ali é aceso o fogo sagrado que empunharão, através dos séculos, todos aqueles que se compromissaram, mesmo ao preço de injúrias, suor e lágrimas, a divulgar as glórias do Espiritismo pela bênção da palavra.
Todavia a noite inesquecível transcende em significações.
A mulher, perfumada de amor e vestida de renúncia, vai ser a valiosa companheira do Espiritismo. Os dois cúmplices, de mãos dadas, descerão as escadas sombrias ou baterão, docemente, às portas das mansardas. Secarão lágrimas e reacenderão esperanças. Mais e melhor do que o homem, ela comporá a galeria torturada dos grandes médiuns que abalarão os negadores mais recalcitrantes. Tinha seguido os passos de Jesus e se mantivera solitária aos pés da cruz até que as roucas invocações subiram ao Gólgota quando as cortinas do templo se partiram.
Agora que o Consolador prometido se anunciava, pressurosa ela corria a ocupar o lugar de seu destino. Se ontem chamara-se Maria de Magdala, Marta, Maria ou Salomé, hoje chama-se Sra. Dijou. Por isso todo o encanto se prejudicaria se, naquela noite outonal de 1860, imprescindível presença, ela não tivesse descerrado a Allan Kardec as portas do Centro Espírita de Broteaux.
Todavia ali está a Sra. Dijou. Seu sorriso sem artifícios é como um maravilhoso diálogo, seu olhar resoluto é cheio de convicção. Pode-se imaginar que tenha descido da Croix-Rousse para os Terreaux, nos grupos tumultuosos de operários quando lhes faltou o trabalho.
Agora, firmemente especada ao lado do marido, ela é a segunda potência nesse momento histórico. Qual é o seu prenome? Por que veio a partilhar essa situação da qual, em obediência ao status social vigente no tempo, apenas o homem deveria ser o ator visível?
Não se pode saber! A Sra. Dijou caminhou através dos anos e o tempo tudo ou quase tudo apagou. Ele tem, afinal, o poder de transformar em um enigma mesmo a mais simples dentre as mulheres do povo.
Kardec, entretanto, pressentiu que ela se tornaria em um monumento. E, por isso, bem ao seu modo, guardou-lhe, não os traços físicos, mas os traços morais. Do jantar amável que lhe foi oferecido pelo operariado de Lyon, transcreveu na sua Revue o pequeno discurso do Sr. Courtet, um negociante, no qual a Sra. Dijou se encontra de corpo inteiro. “Senhores! Na qualidade de membro do grupo Espírita de Broteaux e em seu nome, venho vos propor um brinde em honra do Sr. e da Sra. Dijou.
Senhora! Cumpro um dever muito agradável, servindo de intérprete de toda a nossa sociedade, que vos agradece por tudo quanto fizestes em nosso favor! Quantas consolações haveis feito brotar entre nós! Quantas lágrimas de ternura e de alegria nos fizestes derramar! Vosso coração, tão bom e tão modesto, não se orgulhou com os vossos sucessos e, com isso, vossa caridade aumentou.
Bem sabemos, senhora, que apenas sois o intérprete dos Espíritos superiores, que a vós estão ligados, mas, também, com que devotamento realizais essa tarefa! Por vosso intermédio nos iniciamos a essas altas questões de moral e filosofia, cuja solução deve trazer o reino de Deus e, por conseqüência, a felicidade aos homens neste mundo.
Também vos agradecemos, senhora, a assistência que dais aos nossos doentes. Vossa fé e vosso zelo disso recebem a recompensa pela satisfação que experimentais em fazer o bem e aliviar o sofrimento. Nós vos pedimos a continuação dos vossos bons ofícios: ficai certa de toda a nossa gratidão e de nosso eterno reconhecimento.”
Na história do Espiritismo kardecista, essa mulher do povo, essa esposa e mãe de operários, é a primeira figura feminina que se projeta na linha de um horizonte difuso, no qual, entretanto, firmemente acendem-se as luzes das mais altas aspirações e expectativas jamais oferecidas ao gênero humano. A Sra. Dijou sobrepõe-se às personalidades torturadas, para além do suportável, às mulheres de sua classe, em seu tempo, e cerrando as portas do Centro Espírita de Broteaux, à saída de Allan Kardec, finda a sessão memorável, cerra também as portas do passado.
Em verdade todas as mulheres que hoje vivem e abençoam a “situação” e a “condição” de espíritas, devem-lhe gratidão, pois que a Sra. Dijou é um ser distinto, marcado com os sinais precisos e irrefutáveis de uma ação que lhe deve ter custado a ameaça de mil perigos invisíveis.

Viagem Espírita em 1862
Allan Kardec