(publicado na Revista Espírita, fevereiro de 1862)
Meus caros irmãos e amigos de Lyon,
O requerimento coletivo que consentis em me enviar, por ocasião do ano novo, causou-me bem viva satisfação, provando-me que conservais uma boa lembrança de mim; mas o que me deu mais prazer nesse ato espontâneo de vossa parte foi encontrar, entre as numerosas assinaturas que ali figuram, representantes de quase todos os grupos, porque é um sinal da harmonia que reina entre eles. Estou feliz em ver que compreendestes perfeitamente o objetivo desta organização da qual já podeis apreciar os resultados, porque deve estar evidente agora, para vós, que uma Sociedade única teria sido quase impossível.
Eu vos agradeço, meus bons amigos, pelos votos que formulais por mim; eles me são tanto mais agradáveis quanto sei que partem do coração, e são aqueles que Deus escuta. Ficai, pois, satisfeitos, porque Ele os atende cada dia, dando-me a alegria inaudita no estabelecimento de uma nova doutrina, de ver aquela a que me devotei crescer e prosperar, enquanto vivo, com uma maravilhosa rapidez. Considero como um grande favor do céu ser testemunha do bem que ela já fez. Esta certeza, da qual recebo diariamente os mais tocantes testemunhos, me paga com usura todas as minhas dificuldades e todas as minhas fadigas; não peço a Deus senão uma graça, que é a de me dar a força física necessária para ir até o fim de minha tarefa, que está longe de ser terminada; mas, o que quer que ocorra, terei sempre o consolo de estar seguro de que a semente das idéias novas, agora difundida por toda parte, é imperecível; mais feliz do que muitos outros, que não trabalharam senão para o futuro, foi-me dado ver-lhe os primeiros frutos. Se uma coisa lamento, é que a exigüidade de meus recursos pessoais não me permita pôr em execução os planos que concebi para o seu adiantamento ainda mais rápido; mas se Deus, em sua sabedoria, acreditou dever isso decidir de outro modo, legarei esses planos aos meus sucessores que, sem dúvida, serão mais felizes. Apesar da penúria dos recursos materiais, o movimento que se opera na opinião superou toda esperança; crede bem, meus irmãos, que nisso vosso exemplo não terá sido sem influência. Recebei, pois, nossas felicitações pela maneira pela qual sabeis compreender e praticar a Doutrina. Sei o quanto são grandes as provas que muitos dentre vós tereis que suportar; só Deus lhes conhece o fim neste mundo; mas também que força a fé no futuro dá contra a adversidade! Oh! lamentai aqueles que crêem no nada depois da morte, porque para eles o mal presente não tem compensação. O incrédulo infeliz é como o doente que não espera nenhuma cura; o Espírita, ao contrário, é como aquele que está doente hoje e que sabe que amanhã estará bem.
Pedis a mim para vos continuar com meus conselhos; eu os dou de boa vontade àqueles que crêem deles ter necessidade e que os reclamam; mas não os dou senão àqueles; aos que pensam deles saber bastante e poder abster-se das lições da experiência, nada tenho a dizer, senão que desejo que não tenham a se lamentar um dia por terem muito presumido de suas próprias forças. Essa pretensão, aliás, acusa um sentimento de orgulho, contrário ao verdadeiro espírito do Espiritismo; ora, pecando pela base, provam só por isso que se afastam da verdade. Não sois desse número, meus amigos, e é por isso que aproveito a circunstância para vos dirigir algumas palavras que vos provarão que, de longe como de perto, estou inteiramente ao vosso dispor.
No ponto em que hoje as coisas estão, e ao ver a marcha do Espiritismo através dos obstáculos semeados sobre o seu caminho, pode-se dizer que as principais dificuldades estão vencidas; ele tomou seu lugar e está assentado sobre bases que desafiam, doravante, os esforços de seus adversários. Pergunta-se como uma doutrina que nos torna felizes e melhores, pode ter inimigos; isso é muito natural: o estabelecimento das melhores coisas, no começo, fere sempre interesses; não foi assim com todas as invenções e descobertas que fizeram revolução na indústria? As que hoje são olhadas como benefícios, sem as quais não se poderia mais se passar, não tiveram inimigos obstinados? Toda lei que reprime os abusos não tem contra si aqueles que vivem dos abusos? Como quereríeis que uma doutrina que conduz ao reino da caridade efetiva não seja combatida por todos aqueles que vivem do egoísmo; e sabeis o quanto são estes numerosos sobre a Terra! No princípio, esperaram matá-la pela zombaria; hoje vêem que essa arma é impotente, e que sob o fogo constante dos sarcasmos continuou seu caminho sem tropeçar; não credes que eles irão se confessar vencidos; não, o interesse material é mais tenaz; reconhecendo que é uma força com a qual, doravante, é preciso contar, vão lhe travar assaltos mais sérios, mas que não servirão senão para melhor provar sua fraqueza. Uns atacarão abertamente, em palavras e em ações, e a perseguirão até na pessoa de seus adeptos, que tentarão desencorajar à força de tormentos, ao passo que outros, ocultamente e por caminhos deturpados, procurarão miná-la surdamente. Tende, pois, por advertidos de que a luta não terminou. Estou prevenido de que vão tentar um supremo esforço; mas não tenhais medo; a garantia do sucesso está nesta divisa, que é a de todos os verdadeiros Espíritas: Fora da caridade não há salvação. Arvorai-a claramente, porque ela é a cabeça de Medusa para os egoístas.
A tática já usada pelos inimigos dos Espíritas, mas que vão empregar com um novo ardor, é a de tentar dividi-los, criando sistemas divergentes e suscitando entre eles a desconfiança e a inveja. Não vos deixeis prender na armadilha, e tende por certo que quem procura, por um meio qualquer que seja, romper a boa harmonia, não pode ter uma boa intenção. É por isso que vos convido a colocardes a maior circunspecção na formação de vossos grupos, não somente para vossa tranqüilidade, mas no próprio interesse de vossos trabalhos.
A natureza dos trabalhos espíritas exige a calma e o recolhimento; ora, não há recolhimento possível se se distrai por discussões e a expressão de sentimentos malévolos. Não haverá sentimentos malévolos, se houver fraternidade; mas não pode aí haver fraternidade com egoístas, ambiciosos e orgulhosos. Com orgulhosos que se melindram e se ofendem com tudo, ambiciosos que estarão frustrados se não tiverem a supremacia, egoístas que não pensam senão neles, a discórdia não pode tardar a se introduzir e, daí, a dissolução. É o que querem nossos inimigos, e é o que procurarão fazer. Se um grupo quer estar em condições de ordem, de tranqüilidade e de estabilidade, é preciso que nele reine um sentimento fraternal. Todo grupo ou sociedade que se forma sem ter a caridade efetiva por base, não tem vitalidade; ao passo que aqueles que serão fundados segundo o verdadeiro espírito da Doutrina se olharão como os membros de uma mesma família, que, não podendo todos habitar sob o mesmo teto, moram em lugares diferentes. A rivalidade entre eles seria um contra-senso; ela não poderia existir ali onde reina a verdadeira caridade, porque a caridade não pode se entender de duas maneiras. Reconhecereis, pois, o verdadeiro Espírita pela prática da caridade em pensamentos, em palavras e em ações, e dizei-vos que, quem nutre em sua alma sentimentos de animosidade, de rancor, de ódio, de inveja ou de ciúme mente a si mesmo se pretende compreender e praticar o Espiritismo.
O egoísmo e o orgulho matam as sociedades particulares, como matam os povos e a sociedade em geral. Lede a história, e vereis que os povos sucumbem sob o amplexo desses dois mortais inimigos da felicidade dos homens. Quando se apoiarem sobre as bases da caridade, serão indissolúveis, porque estarão em paz entre eles e com eles próprios, cada um respeitando os direitos e os bens de seu vizinho. É a era nova predita, da qual o Espiritismo é o precursor, e pela qual todo espírita deve trabalhar, cada um em sua esfera de atividade. É uma tarefa que lhes incumbe, e da qual serão recompensados segundo a maneira que a terão cumprido, porque Deus saberá distinguir aqueles que não terão procurado no Espiritismo senão a sua satisfação pessoal, daqueles que terão, ao mesmo tempo, trabalhado pela felicidade de seus irmãos.
Devo ainda vos assinalar uma outra tática de nossos adversários, que é a de procurar comprometer os espíritas, impelindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da Doutrina, que é o da moral, para abordarem questões que não são de sua alçada, e que poderiam, a justo título, despertar suscetibilidades sombrias. Não vos deixeis, não mais, vos prender nesta armadilha; afastai com cuidado, em vossas reuniões, tudo o que tem relação com a política e com questões irritantes; as discussões sobre esse assunto não levariam a nada senão a vos suscitar embaraços, ao passo que ninguém pode achar de censurar a moral quando ela é boa. Procurai, no Espiritismo, o que pode vos melhorar, está aí o essencial; quando os homens forem melhores, as reformas sociais, verdadeiramente úteis, lhe serão a conseqüência muito natural; trabalhando para o progresso moral, possuireis os verdadeiros e os mais sólidos fundamentos de todos os melhoramentos, e deixais a Deus o cuidado de fazer as coisas chegarem a seu tempo. Oponde, pois, no próprio interesse do Espiritismo que é ainda jovem, mas que amadurece depressa, uma inabalável firmeza àqueles que procurarem vos arrastar num caminho perigoso.
Tendo em vista o descrédito do Espiritismo, alguns pretendem que ele vai destruir a religião. Sabeis, muito ao contrário, uma vez que a maioria entre vós que acreditáveis com dificuldade em Deus, e em sua alma, nisso crêem agora; que não sabiam o que era orar, e que oram com fervor; que não punham mais os pés nas igrejas, e que ali vão com recolhimento. Aliás, se a religião devesse ser destruída pelo Espiritismo, seria destrutível e o Espiritismo seria mais poderoso; dizê-lo seria uma imperícia, porque isso seria confessar a fraqueza de uma e a força do outro.
O Espiritismo é uma doutrina moral que fortalece os sentimentos religiosos em geral e se aplica a todas as religiões; ele é de todas, e não é de nenhuma em particular; é por isso que não diz a ninguém para mudá-la; deixa cada um livre para adorar a Deus à sua maneira, e observar as práticas que a sua consciência lhe dita, tendo Deus mais em conta a intenção do que o fato. Ide, pois, cada um nos templos de vosso culto, e provai com isso que o taxam de impiedade ou de calúnia.
Na impossibilidade material em que estou de manter relações com todos os grupos, peço a um de vossos confrades consentir em me representar, mais especialmente em Lyon, como o fiz alhures; foi o Sr. Villon, cujo zelo e devotamento vos são conhecidos, tão bem quanto a pureza de seus sentimentos. Sua posição independente lhe dá, além disso, mais lazer para a tarefa que consentiu de se encarregar; tarefa pesada, mas diante da qual não recuará. O grupo que formou em sua casa o foi sob meus auspícios e segundo minhas instruções, quando de minha última viagem; nele encontrareis excelentes conselhos e salutares exemplos. Verei, pois, com uma viva satisfação, todos aqueles que me honrarem com a sua confiança e nela se unirem como a um centro comum. Se alguns querem se apartar, guardai-vos de vê-los com maus olhos; se vos atiram a pedra, não a recolhais, nem a devolvais: entre eles e vós Deus será o juiz dos sentimentos de cada um. Que aqueles que crerem estar na verdade com a exclusão dos outros provem-no por uma maior caridade e uma maior abnegação do amor-próprio, porque a verdade não poderia estar do lado daquele que falta ao primeiro preceito da Doutrina. Se estais na dúvida, fazei sempre o bem: os erros do Espírito pesam menos na balança de Deus do que os erros do coração.
Repetirei aqui o que disse em outras ocasiões: em caso de divergência de opinião, há um meio fácil para sair da incerteza, é o de ver a que mais liga os partidários, porque há nas massas um bom senso inato que não poderia se enganar. O erro não pode seduzir senão alguns Espíritos cegos pelo amor-próprio e um falso julgamento, mas a verdade acaba sempre por se impor; tende, pois, por certo que ela abandona as classes que se esclarecem, e que há uma obstinação irracional em crer que um só tem razão contra todos. Se os princípios que eu professo não encontrassem senão alguns ecos isolados, e se fossem repelidos pela opinião geral, eu seria o primeiro a reconhecer que pude me enganar; mas vendo crescer, sem cessar, o número dos adeptos, em todas as classes da sociedade, e em todos os países do mundo, devo crer na solidez da base em que repousam; é por isso que vos digo, com toda a segurança, para marchardes com passo firme no caminho que vos está traçado; dizei aos vossos antagonistas que, se querem que os sigais, vos ofereçam uma doutrina mais consoladora, mais clara, mais inteligível, que melhor satisfaça à razão, e que seja, ao mesmo tempo, uma melhor garantia para a ordem social; frustrai, pela vossa união, os cálculos daqueles que quereriam vos dividir; provai, enfim, pelo vosso exemplo, que a Doutrina nos torna mais moderados, mais brandos, mais pacientes, mais indulgentes, e isso será a melhor resposta a dar aos seus detratores, ao mesmo tempo em que a visão de seus resultados benfazejos é o mais poderoso meio de propaganda.
Eis, meus amigos, os conselhos que vos dou e aos quais junto meus votos para o ano que começa. Não sei quais provas Deus nos destina para este ano, mas sei que, quaisquer que sejam, vós a suportareis com firmeza e resignação, porque sabeis que, para vós como para o soldado, a recompensa é proporcional à coragem.
Quanto ao Espiritismo, pelo qual vos interessais mais do que por vós mesmos, e do qual, pela minha posição, posso julgar, melhor do que ninguém, os progressos, estou feliz em vos dizer que o ano se abre sob os auspícios mais favoráveis, e que verá, sem nenhuma dúvida, o número dos adeptos crescer numa proporção impossível de se prever; ainda alguns anos como os que vêm de se escoar, e o Espiritismo terá por ele os três quartos da população. Deixai-me vos citar um fato entre mil.
Num departamento vizinho de Paris, há uma pequena cidade onde o Espiritismo penetrou há seis meses apenas. Em algumas semanas, tomou um desenvolvimento considerável; uma oposição formidável foi logo organizada contra os seus partidários, ameaçando mesmo seus interesses privados; tudo enfrentaram com uma coragem, um desinteresse dignos dos maiores elogios; entregaram-nos à Providência, e a Providência não lhes faltou. Essa cidade conta com uma população operária numerosa, na qual as idéias espíritas, graças à oposição que se lhe fez, fazem luz rapidamente; ora, um fato digno de nota é que as mulheres, as jovens esperaram seus presentes para se proporcionarem as obras necessárias à sua instrução, e foi por centenas que uma livraria foi encarregada de expedi-las só nessa cidade. Não é prodigioso ver simples operários reservarem suas economias para comprar livros de moral e de filosofia, antes que romances e bagatelas? Homens preferirem essa leitura às alegrias barulhentas e embrutecidas do cabaré? Ah! é que esses homens e essas mulheres, que sofrem como vós, compreendem agora que não é neste mundo que a sua sorte se cumpre; a cortina se levanta e eles entrevêem os esplêndidos horizontes do futuro. Essa pequena cidade é Chauny, no departamento do Aisne. Novas crianças na grande família, vos saúdam, irmãos de Lyon, como mais velhos, e formam doravante um dos anéis da corrente espiritual que já une Paris, Lyon, Metz, Sens, Bordeaux e outras, e que logo ligará todas as cidades do mundo num sentimento de mútua confraternização; porque por toda parte o Espiritismo lançou sementes fecundas, e seus filhos já se estendem as mãos acima das barreiras dos preconceitos de seitas, de castas e de nacionalidades.
Vosso muito devotado irmão e amigo,
Allan Kardec.
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